Hoje, depois de um dia esquisito, incapaz de me
concentrar por muito tempo em uma só tarefa, eu redescobri um devaneio que me
acompanha desde sempre, mas que silencio há anos. O desejo de conhecer o outro.
De enxergar e ver o outro. É um devaneio que talvez beire a insanidade, não
sei. Por outro lado, acho que seria audacioso supor que apenas eu dentre muitos
seja constantemente acometida por esse anseio. Talvez faça parte da natureza
humana, mas, por uma série de razões, seja sufocado pela maioria.
_____________________________________________________________________________________________
Como descrever alguém sem cair em floreios
desnecessários? Ou em floreios de menos? Como estampar em palavras um outro ser?
Esse sempre foi um questionamento corriqueiro que vagava pelos recantos da
mente à época em que eu escrevia vorazmente. As idiossincrasias, os
maneirismos, o sorriso, os sonhos e desejos de uma criatura refletidos no papel
ou na lauda do Word, num rodapé com o
mínimo de caracteres possível, no recanto de um cérebro embebido em amor
platônico. Pois bem, a angústia e a dúvida retornaram.
Eu costumava escrever profundas descrições repletas
de idealização, um sonho irrestrito de adjetivos e impressões. Para mim eram retratos
fidedignos, jamais se elevavam além ou aquém do que as criaturas descritas, em
essência, eram. Mas o que conhece das gentes uma criança com tão ambiciosas
aspirações? Ou melhor: o que conhece de qualquer pessoa quem quer que seja? Quem é você sem todas essas camadas, livre
das infinitas personas que assume? Onde está você em meio a esse caos de
movimentos e expressão? I wish to see you.
No entanto, não se trata apenas de reduzir o outro a um conjunto de palavras, mas de (re)conhecer. Navegamos por essa vida sem nunca conhecermos uns
aos outros por completo, mas, constantemente, alegando - se não a terceiros, a
si mesmos - saber exatamente quem são eles.
Não sabemos nem mesmo de nós. Quaisquer requisições de descrições sobre mim
mesma me apavoram. Quando mandatórias, então, anulo-me completamente para caber
e cumprir a convenção – quase sempre vazia – de dizer de mim.
Apesar disso, mais e mais me comovo e surpreendo com
as tentativas de imprimir fora do corpo o que reside intimamente nele – e ao
redor, se for energia, vibração, alma.
Impressionam-me os detalhes descritivos que parecem ter desnudado aquele alguém
completamente de sua essência, sem deixar um só grão de individualidade desconhecido
em seu corpo. Porque, no fundo, já é sabido: a descrição não se trata daquele
alguém, mas de como foi sonhado por outra pessoa, por quem o descreve. Então
como descrever as criaturas fielmente? Paira, sombria e fria, acima do vórtice
de dúvidas e anseios de captura, a constatação de que não se pode extrair nada
além da interpretação. Porque não se pode invadir o interior do outro, explorar
cada fissura do ser, assumir para si aquela existência alheia. É a constatação
da morte. Certa e indelegável.
Por fim, é isso? Jamais superaremos a descrição
enquanto uma ideia que fazemos dos seres que não nós mesmos? Quem reside ali dentro
não se mostra por inteiro no exterior, também não sussurra em meu ouvido suas
verdades mais profundas, desejos e devaneios, as tristezas e alegrias,
julgamentos, medos e culpas. Portanto o que extraio dos seres não passa de
interpretação, da ideia que faço deles. Ainda que - de momento - resiliente, eu
não fujo à busca constante de quem é o outro. Uns me fascinam especialmente, é
verdade. Mas não é difícil me flagrar observadora, contemplativa dos gestos, do
riso, da fala, do olhar alheios, caçando aquele instante de ilusão da captura. I wish to see you as you are.